Crónica de Jorge C Ferreira | Saudades

Jorge C Ferreira

 

Saudades

por Jorge C Ferreira

 

Ganhar a vida e o mundo, uma estranha forma de andar. Não saber das horas e dos dias. Aprender a estar. Aprender a ganhar os momentos únicos. Os momentos de sempre. Como uma luz saída de um vitral. Como a ascensão de uma imagem iluminada. Como o sentimento de um viver intenso.

A alegria única. O sabor do calor e do frio. O azul e o cinzento. Os encontros inesperados. A inesperada ternura. A atenção inexplicável que é um modo de estar. Os lugares que nos ficam na memória. As pessoas que passam a fazer parte da nossa vida. Também Saudades e vontade de voltar aonde fomos felizes. De vez em quando mexemos nalgumas coisas que de lá carregámos. Assim se vive.

Hotel Patrimonial – Cerro de la Concepcion – Valparaíso.

Um hotel suspenso no cerro. Um hotel muito antigo. Consta que foi o primeiro a hospedar viajantes nos cerros. Fico num quarto restaurado. Um quarto pequeno, mas com tudo o que necessitamos. Uma janela também pequena de onde se vê o Pacífico e onde, por vezes, as gaivotas nos vêm visitar e avisar que o tempo vai mudar.

Ao pequeno-almoço, servido à mesa, vejo uma coisa estranha, uma alemã a ler, A “Viagem do Elefante” de José Saramago, em castelhano. Uma pequena conversa a saber do seu interesse pelo escritor. No seu castelhano impecável explicou-me o essencial.

Dom Raul, o dono do hotel considerado o pioneiro da instalação dos hotéis nos cerros, também já me tinha falado em Saramago e da sua admiração e amizade com o escritor. Por isso há uma biblioteca com as obras de Saramago naquele hotel, naquele cerro.

D. Raul Alcazar com quem muito falei e nunca mais vi, com pena minha:

Gosta do Património e de o preservar;

Gosta de Saramago e da sua obra;

Ama a Liberdade.

Fiquei naquele hotel, que também era a casa de Dom Raul, sem saber o que iria encontrar. Tudo cheirava a história naquele lugar. Afinal viajar é isto, encontrar o inesperado como se tudo estivesse à nossa espera desde sempre.

A Ângela:

A delicada e prestável Ângela.

A Ângela, recepcionista do Hotel Patrimonial, assumiu-se como nosso anjo da guarda em Valparaíso. Preocupava-se com os trajectos que íamos fazer, com os ascensores que estavam avariados, com os táxis que devíamos tomar, com as ruas que devíamos evitar.

No dia em que fomos visitar a Sebastiana, quando lá chegámos já tínhamos um recado da Ângela a dizer que o ascensor que nos tinha indicado estava avariado. Quando saíamos da Sebastiana já Ângela tinha telefonado de novo a saber se estava tudo bem connosco.

Antes de deixar o Patrimonial, fomos de novo ao miradouro do hotel. O sítio onde a Isabel ia fumar. Fomos dizer adeus àquela vista belíssima. Depois demos dois beijos a Ângela que, entretanto, já tinha providenciado o táxi para irmos para o porto. Íamos terminar a nossa volta à América do Sul e rumar até Fort Lauderdale. Quando já estávamos no navio telefonámos a despedirmo-nos da Ângela.

A aventura ia começar.

Tenho imensas saudades de toda esta gente.

Tudo isto aconteceu em 2012. Nada sei do hotel, nem das pessoas que encontrei.

Será que algum dia lá voltarei?

«Lembro-me da alegria com que chegaram dessa viagem. O que eu adorava que voltassem lá.»

Fala de Isaurinda.

«Obrigado, minha querida. Quem sabe? Mas é muito longe.»

Respondo.

«Sei que a Isabel iria adorar. Acho que ainda lá vão voltar.»

De novo Isaurinda e vai, um sorriso de esperança no rosto.

Jorge C Ferreira Maio/2023(397)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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28 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Saudades”

  1. Manuel Fernando da Costa Silva

    Não conheço mas rendido fiquei com tantas deliciisas descrições desta viagem de experiências e de memórias riquíssimas e maravilhosas…Pessoas e lugares inesquecíveis ! “Saudades” mais uma Cronica de excelência que adorei e guardei meu amigo. Forte abraço…

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Manuel Costa Silva. São .uito gratificantes a sua leitura das minhas crónicas e os comentários que lhes dispensa. A minha maior gratidão. Abraço grande

  2. Regina Conde

    Saudades, o renascer das muitas memórias que viveram. Tão bom os dois somarem as vivências. Está na hora de viajarem aos sítios onde vivem pessoas de tanta energia. Nunca se vê tudo. Abraço Amigo Jorge.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Regina, viajar é preciso. Conhecer nova gente, novas terras, novas maneiras de viver. Voltar a ser feliz. A minha gratidão. Abraço grande

  3. Maria Fernanda Morais

    Fui ver as fotografias e tambem ja vi que de Santisgo lá não é muito longe.
    Eu estou apaixonada por Valparaíso. Nunca pensaste voltar lá de avião via Santiago?
    Que sitio mais lindo onde nascei Pablo Neruda!
    O que eu sofri por Vitor Jara!
    Os nossos heróis mártires do Chile!
    Diz me das horas do voo !
    Entretanto vou ver uns vídeos. Beijinhos à Isabel

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. Fui sempre via Santiago. Depois fui de táxi, já não me lembro do preço. O voo via Madrid demora 14/15 horas. A minha gratidão por estares aqui. Abraço grande

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Tantas e tão belas memórias, que guardam no vosso coração, sempre em sintonia com a imagens, que os vossos olhos captaram. Serão consolo, da vossa saudade.
    A Angela, pessoa gentil e eficiente no seu trabalho, jamais irá esquecer-vos, pela forma terna e reconhecida, que lhe dedicaram.
    Lindíssima a sua Crónica.
    É sempre um prazer viajar num mar de palavras, só suas, querido poeta.
    Abraço meu.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Nós também não esquecemos a Ângela. É uma maravilha encontrar pessoas assim no nosso camingo. São marcas que ficam. Há sempre alguém especial que espera por nós num canto do mundo muito grato pelo seu comentário. Beijinho

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Tantas e tão belas memórias, guardam no vosso coração, sempre em sintonia com as imagens que os vossos olhos captaram. Serão consolo, da vossa saudade.
    A Angela, pessoa gentil e eficiente jamais irá esquecer-vos, pela forma terna e reconhecida, que lhe dedicaram.
    Lindíssima a sua Crónica. É um prazer viajar, neste mar de palavras só suas, querido poeta.
    Abraço meu.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza já respondido. Abraço

  6. Eulália Coutinho Pereira

    Crónica maravilhosa.Que bom ter memórias que deixam saudades.
    Que bom reviver cada momento, cada lugar. As pessoas que fizeram parte dos momentos felizes da vida. Saudade.A melancolia da ausência. A ausência dos lugares onde se foi feliz. A ausência das pessoas que partiram, por uma razão ou outra e nos fizeram felizes.
    Momentos que não se repetem. Ficam na memória.
    Amanhã sentirei saudades deste momento. É um momento feliz, este em que leio, escrevo e tenho memória.
    Obrigada Amigo.
    Grande abraço.
    .

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. A vida é o momento que vivemos. A memória é uma dádiva que devemos exercitar. Somos o conjunto dos momentos que nis marcaram. A minha imensa gratidão pelo seu comentário. Abraço grande

  7. José Luís Outono

    Memórias de tempos, que nos marcam sentires e deduções nos traços deste presente.
    Olhares do ontem, e apenas esquecidos pela não presença regular.
    Recados de um viver em análise de simetrias entre verdades e amizades.
    O sonho será sempre um parágrafo determinador na correcção de momentos vitamina das nossas leituras e/ou vivências.
    E o dizer acontece nas páginas do teu diário sem posfácio previsto.
    Que bom partilhar o teu criar.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luis, poeta. A nossa vida é tudo isso que dizes. Nada se repete. Porque as coisas vão mudando e o nosso modo de ver também. Saber quem somos e onde estamos. Muito grato por estares aquii. Abraço enorme.

  8. Claudina silva

    Amei! Querido Poeta Jorge C Ferreira
    que continues a saborear a vida junto de quem amas! Um grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Claudina. Também eu amo os teus comentários. Simples e sentidos. A minha gratidão. Abraço enorme

  9. Filomena Geraldes

    conta-me desse tempo em que tudo te parecia escrito com a nitidez dos nomes das pessoas que conheceste e com quem privaste.
    conta-me dos sítios, do formigueiro que acode aos lábios, do quarto de
    hotel muito antigo com uma pequena janela debruçada sobre o azul pacífico.
    do dono do lugar, amante da liberdade e senhor de uma vasta
    biblioteca suspensa sobre um
    cerro visitado por gaivotas.
    conta-me do livro da viagem, dos
    beijos que lá deixaste, das presenças que te ocupam a memória do caminho dos sonhos.
    conta-me do teu anjo da guarda e dos lugares onde se agasalharam
    de ternura teus olhos.
    da nostalgia que não se rende
    à arquitectura das palavras.
    conta-me.
    como se hoje fosse só um dia para sentir

    saudade.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. Escreveste mais um Poema. Sabes que te conto tudo. O que me lembro e o que invento. Sei que todas essas palavras ficarão bem entregues. A minha gratidão pela tua presença neste espaço. Abraço grande

  10. Cristina Ferreira

    Querido Jorge
    Para além da escrita, admiro muito a tua fantástica memória. Que Benção enorme.
    Vislumbro o sorriso de esperança no rosto de Idaurinda. Tão bom!
    Abraço grande

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Que bom estares neste espaço mais uma vez. Que bom gostares do que escrevo. A minha gratidão. Abraço grande

  11. Cristina

    Um sorriso de esperança no rosto.

    Para além da escrita, admiro muito a tua memória. Uma maravilha. Tudo!
    Abraço grande

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Já respondi. Abraço

  12. Fernanda Luís

    Amigo Jorge
    É um prazer enorme viajar consigo.
    Interessante que, Passados uns bons anos, as imagens, as aventuras e as ligações com as pessoais continuam bem vivas, bem gravadas na memória e na alma, como se fossem um prolongamento de si.
    Bela descrição poética …
    Tem boas razões para se sentir uma pessoa feliz, mesmo sofrendo de saudades.
    “Vale sempre a pena quando a alma não é pequena”.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Fernanda. É tão bom saber que também fez esta viagem através do que escrevi. Há pessoas, coisas e lugares que ficam, para sempre, na nossa memória. A minha gratidão. Abraço grande

  13. Cecília Vicente

    Que bom é voltar às tuas viagens e estar com as tuas pessoas.
    Fico grata por esta e outras partilhas com memorias e feitos me levam e trazem toda a bagagem por contar.
    Obrigada meu amigo. Abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Que bom estares aqui de novo. Tão bom ler os teus comentários. Contar o que nos marcou com a esperança de fazer os outros felizes. A minha gratidão. Abraço grande

  14. Cecilia Maria Vicente

    Que bom voltar a ler viagens e conhecer as tuas pessoas. De multiplas escolhas
    é fazer por estar por todas as viagens feitas criaando memórias partilhá-las é de sensibilidade acrescida. Obrigada sempre meu querido amigo. Abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cecília. Já respondi em parte. Grato estou eu de te voltar a ler aqui. Abraço enorme

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